9.12.07

Tal como uma folha de palavras arrastadas e partidas, também as nossas mãos se partiram em pedaços que nunca conseguiremos colar. Como se as peças estivessem misturadas em partes indefinidas, como se as peças que supostamente encaixavam não encaixassem mais. Como se as fendas e reentrâncias de uma mão não fossem preenchidas pelas saliências da outra. Existem folhas secas no chão, que as árvores cuspiram, e fazes elevar os pés como se quisesses esmagar todo o mundo ao mesmo tempo. E por momentos pareces conseguir. Fazes rebentar o chão, com o choro das folhas secas que estalam por entre os teus sapatos. E o mundo pensa que o consegues vencer com a tua revolta. Mas não. Tal como eu sinto que as nossas mãos se partiram, tu também te partiste do mundo, deixando um rasto de súplicas e lágrimas. O mundo vive atormentado pelos teus passos de gigante estalando as folhas do chão, mas és tu que realmente vive atormentado pelo mundo e pelos seus passos que te estalam a pele como as folhas que pisas.
Tal como uma folha de palavras arrastadas e partidas, também os nossos pés se arrastam por entre ruas estreitas de cheiros estranhos, cruéis, sujos. Arrastam-se até haver o fim de um novo começo, em que as nossas mãos conseguem unir-se por entre folhas que cheiram a Outono por todas as nervuras existentes. Assim somos.

17.11.07

Estamos sós. O caminho parece mais longo e os pés parecem pesar. E todas as partes do meu corpo sabem-no e parecem parar a cada instante preciso que os meus pés se movem. As mãos carregam o ar demasiado gelado da noite. Carregam o ar, no movimento que fazem para abrir os olhos e ver o caminho. Elas carregam a ilusão de ter algo. É só o ar gelado a perturbar o equilíbrio da visão já turva. É só o ar gelado que espalha as palavras murmuradas e gastas pelo meio de pessoas que não existem. Estamos sós. E por entre as pedras da rua, notam-se os calcanhares de mil pessoas passadas. Contam os meus olhos as histórias de todas elas. Estamos sós. Não se ouvem palavras que nos aquecem por dentro, não se sente o quente e os olhos fechados de saber que pertencemos a algo maior. E de que serve tudo isso? No fim acabamos como folhas de papel gasto, amarrotado, escrito e reescrito vezes sem conta. Sente-se o frio de palavras que não são nossas, de olhares que não são próprios, de vidas estranhas. Ouvimos vozes…algumas. E para mim todas as pessoas são loucas por verem os calcanhares em carne e osso pisarem as pedras da rua, como se eles fossem reais. Estamos sós. Nós somos reais, eles não. Estamos de passagem. Não olhamos para trás, mas sabemos que os nossos calcanhares não ficam nas pedras tal como os outros e os pés carregam todo o peso de estarmos sós. Todos sabemos em silêncio que há a vontade de ficar onde dois mais dois é igual a cinco.



*2+2=5 Radiohead

14.10.07


O amor carrega nos seus passos a palavra que o diz. E sabe subir-nos de forma incerta e descompassada. Sabe suspender todo o nosso corpo no ar, lentamente, tão lentamente como a lentidão da Terra a girar. E nós não sabemos nem o sentimos a subir. Só no fim é que sabemos que ele desceu. Só no fim é que sabemos que ele continua a subir desenfreadamente pelos fios de cabelo inexistentes. O amor é a certeza inconsciente das palavras proferidas. É o dizer tudo e o pensar que o que se disse ainda é pouco. E quando o amor não nos ama, pensamos que o que dissemos foi demais, bem demais que aquilo que queríamos, podíamos ou desejávamos dizer. O amor é uma guerra a céu aberto, em que todos somos soldados à espera de o combater e no fim acabamos sempre por morrer…no fundo todos sabemos que vamos morrer nessa guerra, tal como sabemos que vamos morrer um dia.
O amor é não pensar e quem pensa não ama, porque quem ama é cego, surdo e mudo. O amor é ter a cabeça no chão.
Eu amo o amor, só não amo quem o ama também. E para mim o amor é amar quem não o ama. O amor é isso e nada mais. O amor é uma simples quantidade de linhas escritas e pensadas à pressa numa manhã escassa e numa noite que me foge.

3.8.07

A cabana era pequena e com umas quantas tábuas de madeira ao alto, incertas e inseguras. Quando o vento girava, elas gingavam como baloiços de crianças. Lá dentro, quase pouco e quase pouco chega para descrever o que era quase nada. Lá fora quase um mundo de areia. O habitante da cabana era um velho chamado Velho. Assim o chamavam e assim era o seu nome. O Velho era um desses velhos mesmo velhos. O corpo era feito de árvore rugosa e gasta, de casca grossa e compacta. O cabelo confundia-se com a areia, muito branco e seco. Na sua cara pareciam ter construído escadas pequeninas e muito juntas, daquelas que poucas pessoas sabem subir. E os seus olhos eram profundos e escuros, feitos de matéria que tudo viu.
Há muito tempo atrás, o Velho tinha nascido. A sua mãe estava a lavar a roupa com água de coco, quando lhe atingiram as pontadas como raios. O pai do Velho recebeu-o nos braços e junto com ele uma fonte de água vermelha já sem vida. Que vivas os anos que a tua mãe não viveu, e proferindo a praga se calou, nunca mais falou e assim morreu mudo como o sol, passados alguns anos. O Velho cresceu, mas já era velho. Já sabia falar, já sabia andar, nadar e pescar… e sempre sozinho aprendeu a controlar os seus pensamentos, as suas angústias e o tédio do mar e das areias, todo o ano a bater-lhe nos calcanhares, escavando-os. O Velho teve de viver a vida da sua mãe primeiro e só depois a sua. Sabendo disto, mergulhava no mar e ficava duas horas sem o nariz tocar no ar. Primeiro a água entrava nos pulmões, e estes dilatavam como duas vasilhas a transbordar, depois a água ficava a baloiçar-se por entre brônquios e outras ramificações, até chegar ao sangue tornando-o semelhante a água vermelha. Depois saía do mar e ficava na areia a cuspir água salgada, como se dentro da sua boca houvesse um depósito inesgotável. Não morria. E o Velho já perdera o fio das contas…estaria no fim da vida de sua mãe ou no fim da sua?
Sentava-se na areia todos os fins de tarde. À volta as coisas repetidas, vistas e revistas milhares de vezes…só de olhar os olhos vomitavam a imagem devolvendo-a ao mundo. Um dia o velho desejou muito morrer. Mas nada aconteceu. A sua morte veio muito depois, em resposta à sua pergunta de forma incerta…o Velho tinha terminado de viver a vida de sua mãe, tinha ultrapassado o meio da sua, não estava no fim. Os deuses lá se compadeceram da velhacaria solitária que era a sua vida e deixaram-no morrer. O corpo sentado na areia como sempre, a cara enterrada numa mão e o sol a tostar o que já estava carbonizado. Depois aconteceu. O seu corpo encarquilhou como uma folha de papel ao lume, ficando imóvel, as suas rugas tornaram-se ainda mais fundas, os seus cabelos ficaram areia. Um tronco de árvore jazido no meio do nada e a cabana plantada ao lado. Às vezes sento-me no velho tronco chamado Velho e ainda consigo ouvir a sua pergunta. Descansa Velho, estás no fim da tua vida.

Beijando o chão por entre linho e algodão imaculado, assim eram os pés dela. Seis anos de gente. Sorriso fácil e vontade de abarcar o mundo inteiro com os seus bracinhos minúsculos eram as suas principais virtudes. E foi esta vontade de abarcar o mundo que a levou à grande estante de madeira escura. Analisou-a durante uns longos segundos, como se fosse uma espécie de deus intocável, depois pôs-se nas pontinhas dos pés, como uma bailarina, tentando chegar ao impossível. Não desistiu. Arrastou uma qualquer cadeira próxima e empoleirou-se com os joelhos no assento. Pôs-se de pé e o dicionário vermelho tocou-lhe o nariz fazendo-lhe cócegas com as partículas sábias que assentavam há anos nas suas folhas e capa. O dicionário estava comprimido entre dois livros, um deles muito gordo e outro deles muito magrinho. Disse-lhes bom dia com o olhar, deu-lhes um beijo curto na capa em jeito de saudação e pediu-lhes para se afastarem um bocadinho. As suas capas tocaram o seu nariz em jeito de assentimento e afastaram-se. Ela puxou o obeso dicionário com muito cuidado, sentido o peso do mundo nas duas palmas da mão. Pousou-o no chão fazendo um baque grave, como alguém que raspou o joelho no chão. Ela abriu-o pelo meio, voltando as folhas para trás e para a frente, tal como a sua mãe lhe tinha ensinado. Sabia desenhar as letras da sua palavra e sabia como procurá-la. Passou pela amolgadela, passando rapidamente para a amónia, ficando presa no significado de amonólise…palavra estranha, significado confuso…parou na amontoação e no amontoar e por fim…ali estava ela…Amor.
Já há algum tempo que o seu nariz procurava o cheiro daquela palavra, que as suas mãos procuravam a textura das suas letras e a sua boca o sabor da sua entoação. Tinha ouvido falar por aí como as noticias que vêm no jornal. Leu-lhe o significado. As suas narinas só captaram o cheiro a velho do dicionário, as suas mãos só sentiam as folhas opacas e amareladas do dicionário e a boca longe estava de saborear algo concreto. Fechou o dicionário com a curiosidade murcha e pôs os pés a caminho para encontrar respostas. A avó disse-lhe o mesmo que o livro velho, o avô nada lhe disse porque não a ouviu por entre o bater da água nas folhas das plantas e a mãe disse-lhe para ler nas entrelinhas. Decompôs a palavra. Entre as linhas. Abriu novamente o dicionário e viu entre as linhas do significado. Havia a cor amarelada da folha, nada mais. Aguçou os olhos, com duas aguças amarelas e as suas meninas dos olhos dilataram-se colando-se ao dicionário. Nada para além de umas quantas palavras já desfocadas e olhos no nariz.
Fechou o dicionário e deixou-o a um canto. Os seis anos de gente percebeu. Afinal o amor não era coisa que viesse no dicionário. Levantou-se e correu para o mundo, levantando pedras e espreitando entre as relvas dos jardins.

17.6.07


E é a mesma vontade, que me leva a encolher o sono e desfilar palavras em linhas inexistentes. É a mesma vontade. Depois de ver imagens, que os olhos não viram mas visionaram, as horas não continuam as mesmas. Há horas atrás, o tempo parecia perder-se numa magnitude desconhecida. Mas agora, há a vontade. A mesma vontade que me faz desfilar estas palavras sobre linhas inexistentes. Já o disse. Repito.
Repito, tal como as pessoas voltam a repetir coisas que estão fora de mim. Não se questionam, não têm uma consciência capaz. Voltam a fazer os mesmos erros até ao limiar da loucura. Talvez da estupidez. Talvez não, é estupidez. Talvez seja um pouco loucura e estupidez misturados, que movem todos os centros dos corpos, puxando-os como a força gravítica, para baixo. Um baixo tão baixo, que chega a tocar a podridão das coisas apodrecidas e esquecidas pelo tempo. Cobertas por camadas e mais camadas. E essas mesmas camadas feitas de pedra e aço que deviam deixar solitária a podridão, são as mesmas camadas que são penetradas facilmente pelo bicho corrosivo, que somos nós.
Eu tenho a vontade, mas não tenho a força de colocar mais camadas de aço por cima da podridão. E eu canso-me ao ver que outros que têm esta vontade, já o tentaram em vão. Há sempre pessoas que lhes sobem às costas e lhes cortam as pernas.
Eu tenho a vontade, a mesma vontade que não só me faz desfilar as palavras, mas também me faz desfilar pensamentos bonitos, em que todos somos um só, e no ar existem melodias que nos fazem explodir de emoção os nossos dentros e dar as mãos.
Chega a ser uma utopia mal amada e triste, que recolhe em mim com um tom desconcertante de impossibilidade. E as horas escorrem em mim, e em todos nós, porque tal como para mim as horas já passaram mais devagar, para todos nós, elas há muito que já não andam ao nosso passo. A nossa hora está a morrer vitima de incompreensão crónica, vitima de pessoas que teimam em penetrar na podridão, só para mostrarem ao mundo que conseguem transpor barreiras de aço.
É a hora, como já dizia alguém, da vontade transpor a vontade…
São palavras desfiladas com trajes de revolta, por entre lágrimas que me lavam por fora e me expõem por dentro.
São palavras feitas da mesma vontade, a mesma vontade que devia ser universal.

9.4.07

Outrora...


Outrora fui alguém. Outrora vestia-me com roupas direitas e engomadas por mim.
Agora vejo as minhas roupas que outrora eram engomadas por mim. Foi alguém que mas trouxe, foi alguém que mas vestiu, foi alguém que decidiu o que ia vestir. Olho-me ao espelho. Tenho cinquenta anos…acho eu. Se não tenho, deveria ter. Não me lembro. Só me lembro da altura em que engomava as minhas roupas e os perfumes da cozinha se entranhavam na minha roupa incendiando a casa dos outros de apetite voraz. O que aconteceu ontem não sei. O que comi de manhã não sei. O que disse a rapariga da televisão cinco minutos atrás não sei. Só sei os momentos felizes que passei quando outrora era alguém mais novo e tinha dias mais felizes. Ando muito esquecida. É a vida que me põe assim. Dantes memorizava cinco recados por uma semana…não era assim. Agora não sei. E continuo a não saber. Será que alguém sabe? Não sei. Não me quero lembrar de agora, prefiro lembrar-me dos dias em que era feliz.
Estou presa à minha memória.

Outrora fui alguém. Outrora era eu quem andava de bicicleta pelo meio das ruas outrora sem carros. Agora vejo as bicicletas amontoadas a um canto. Velhas, sujas, enferrujadas. Lembro-me de andar por as ruas da minha terra à procura de uma noiva. Ela nunca apareceu. Escrevi num papel: “Procura-se noiva”, mas nenhuma apareceu a reclamar o pedaço de papel. O papel ficou velho e gasto como eu. Estou sozinho. Ninguém me quer. Ninguém gosta realmente de mim. E eu continuo sozinho agarrado ao pedaço de papel que teima em não se desfazer com o tempo. E eu tento reparar a solidão, implorando companhia aos que me pisam as costas cansadas. Não sei porque o faço. Será que deveria procurar a companhia de outros? Daqueles que me levam o pão todos os dias e que me procuram nos dias em que não devemos estar sozinhos? Não sei. Eu preciso que todos me acompanhem. Mesmo aqueles que me pisam, porque eles são irmãs, sobrinhas… Deviam-me acompanhar. Preciso.
Estou preso à minha solidão.

Outrora fui alguém. Outrora peguei numa enxada e cavei os meus campos, plantei e colhi os frutos do que fui. Agora estou preso a uma cadeira que parece de cimento. Na frente uma janela que me mostra o mundo, mostrando-me que não posso ver o mundo se não dali. E quero pegar na enxada, mas as pernas ganharam raízes num chão que não existe. E quero levantar-me sem mãos a segurarem-me os braços, mas o meu tronco parece um tronco de árvore rugoso e rígido, incapaz de vergar. Imaginam-me como uma árvore velha? Pois sou. Tenho as mesmas rugas vincadas e os mesmos anos que algumas atingem. Encerro tal como as árvores memórias de Invernos e verões passados. Encerro em mim as boas colheitas, os bons dias de sol, a dureza das chuvas…e lembro-me com cada detalhe, como se fosse hoje. E perco-me nos meus olhos cansados em histórias e canções que o vinho tem o poder de reavivar. Dou por mim a reparar nas minhas mãos tostadas pelo sol, velhas e cansadas demais para uma enxada. Dou por mim a reparar nas veias gordas como seiva bruta de uma árvore. Hoje levanto-me para olhar através da janela aquilo que nunca conseguirei ter mais, o mundo diante de mim ao nível dos meus olhos. Sento-me outra vez. Levanto-me. Sorrio para aqueles que me vêem. Um sorriso terno. Não tenham pena de mim. Levanto-me e olho outra vez pela janela os campos que enchi de sementes. Porquê?
Estou preso ao meu corpo.

Outrora fui alguém. Outrora vestia-me com as minhas saias rodadas e blusas brancas como a cal. Outrora não tinha as mãos calejadas e no meu pescoço pendiam-me fios de ouro. Conheci um homem. Era um homem de enxada na mão. Punha os campos cheios de verde. Casei-me e abandonei para sempre as minhas saias rodadas e blusas brancas. Os fios de ouro ficaram guardados em caixas na cómoda. Não valia a pena usá-los. As blusas brancas ficaram cor de terra. As mãos delicadas, calejadas e gastas. Não me importei. Agora as minhas mãos estão ainda mais gastas, desta vez pelo tempo. A minha cara parece um manto que caiu ao chão. Não me importo. Estou cada vez mais velha, mas nem por isso deixo de encostar a barriga no fogão, nem por isso deixo de pegar numa enxada, nem por isso deixo de levantar o corpo do meu homem cansado, nem por isso deixo de fazer tudo aquilo que fazia antes, talvez faça ainda mais.
Estou presa à obrigação.

Outrora fui alguém. Outrora ouvia os sons do mundo, trabalhava de sol a sol, mas era feliz. Era feliz, porque casei com uma mulher bonita sempre de roupas engomadas e direitas. Eu gostava muito da mulher…acho que ela nunca gostou assim tanto de mim como eu gostei dela. Beijava-lhe o chão. Mas agora, as coisas são bem diferentes. O amor tornou-se em cansaço, não por ela não se lembrar de muitas das coisas que vivemos, mas por não admitir que não se lembra. Tornou-se em cansaço porque não aceita a doença dela e consome-me a paciência ao dizer que está tudo bem. Ela sabe que não sabe. Mas não diz. Pelo menos ela sabe que no dia em que admitir isso, a doença é uma realidade. Consome-me a paciência saber que ela fala para mim e eu não a ouço. Ela acha que não a ouço porque não quero. Não é verdade. Não ouço porque não posso…ela já devia saber…mas não sabe, não se lembra. E continuamos a expelir palavras do dentro que não queremos, tudo porque eu não ouço e porque ela não se lembra.
Estou preso ao quase silêncio.

5.3.07

Conto miúdo

Era uma vez um gato. Um gato preto, muito peludo, e de olhos muito amarelos e abertos. O gato gostava de passear à noite, de cheirar os cantos da cidade e brincar com as latas vazias. Depois dos longos passeios à noite, o gato dormia de dia. Todo o dia enroscado numa almofada azul muito fofinha. E ele fechava os olhos e sonhava com os seus longos passeios à noite…como era feliz… Quando acordava, abria os olhinhos e via tudo à volta, depois lambia-se, lavava a cara e limpava o pêlo brilhante com muito cuidado. Quando acabava a limpeza, levantava-se muito devagarinho, e curvava-se todo e a cauda ficava em forma de caracol.
Certo dia o gato pensou que estava farto da sua cor. Era muito preto, era muito escuro. Queria uma coisa mais alegre e colorida. Pensou em cores para o seu pêlo. Podia ser branco…podia ser amarelo…podia ser vermelho…podia ser azul…e roxo, e verde, e cor-de-rosa e cor-de-laranja! Pensou em tantas cores, que já nem sabia por onde escolher. Mas preto não…queria mudar de cor.
Nessa noite passeou, e no dia a seguir dormiu. Quando acordou, viu pela janela em frente à sua almofada azul, que estava a chover. Caíam pinguinhas gordas na relva, e lá ao longe no céu, um arco-íris muito bonito e grande, com as sete cores.
- Oh! Lá no céu há tantas cores…Gostava tanto de ir até lá mudar a minha cor de pêlo. – Disse o gato. E mal ele acabou de falar, aparece-lhe uma nuvem do céu, que pousa na relva verdinha. O gato nem esperou mais. Saltou para cima da nuvem e foi a voar, a voar, a voar para o arco-íris. Quando chegou ao arco-íris, pousou a patita nas listas de cores, mas como o arco-íris estava molhado por causa da chuva, ele caiu, e foi a escorregar pelo arco-íris fora. Quando o gato chegou ao chão, teve uma grande surpresa, em vez de preto tinha o pêlo com as cores do arco-íris: listas vermelhas, cor-de-laranja, amarelas, verdes azuis e roxas. O gato sorriu e gostou muito do seu novo pêlo. À noite passeou pelas ruas da cidade, mostrando a quem quis ver as sete cores. De dia, dormiu na almofada azul, de olhos fechados e sorriso nos bigodes. Agora, era um gato colorido e feliz.

27.2.07


Chegaste era noite. A noite na cidade escura e de muros altos e apagados. De estrelas frias e nunca olhadas. Tinha o olhar preso em coisa alguma, quando ouvi o estalar de folhas secas. Olhei por cima do ombro e vi-te. Tinhas chegado finalmente. Puseste os pés um à frente do outro e chegaste perto de mim. Sentia-te a respiração, sentia-te o olhar a afastar o ar dos pulmões. Sentia-te perto, demasiado perto. E os teus pés recomeçaram a andar, como se fosse possível andar muito mais do que os milímetros que separavam os teus pés dos meus. Mas foi. Os teus pés ficaram os meus pés, as tuas mãos fecharam-se nas minhas, os teus olhos viram o que eu via, o teu nariz respirou o que eu respirava, sentiste o ar que se deitava no chão. Deitaste-te na minha pele, e senti-te no dentro de dentro do dentro. Deitaste-te na minha pele, e nesse momento morri. Morrer é tu chegares na noite e deitares-te em mim…morrer é dar-te vida, e eu morri, sobre o estalar de folhas secas, sob a cidade escura.







Morri-me. Nasci-me.

7.1.07

Sons cantantes em modo silencioso...

Num dia em que a noite tinha um brilho mais escuro, e que as estrelas tinham um brilho mais forte, as pedras da calçada mortas e gastas, ganharam vida e ressuscitaram vezes e vezes sem conta. Haviam passos que as cobriam, com sapatos obtusos, largos e angulosos, e havia o ruído a dizer baixinho que estavam a chegar. Ao fundo da rua havia a árvore. Não uma árvore, mas a árvore. Porque nela estava toda a beleza, a beleza intransponível daquilo que se chama cor. Folhagens robustas, vermelhas e amarelas, nunca castanhas, lisas, não sujas, jovens e não gastas. Os passos chegavam perto e mais perto. A terra por baixo das pedras tremia devagarinho, como se tivesse medo de acordar as casas e acender luzes. Os passos da frente pararam, depois os segundos e os terceiros, até que por fim todos pararam silenciosamente. Os passos da frente pousaram completamente no chão, afirmando a sua chegada e moldando os pés às rugas da rua. Os outros seguiram-nos. As mãos dos passos da frente percorreram o ar, cheiraram-no e mergulharam-no, fizeram um sinal às outras mãos dos outros passos. Da noite surgiram violinos, do nada surgiram pianos, dos cabelos surgiram guitarras, dos dedos surgiram harpas, e mais do que os olhos podiam querer. As mãos pousaram nos instrumentos e premiram acordes. O som da harpa ouviu-se no fundo do escuro, e a sua nota musical engravidou o ar. O som do violino surgiu desconcertado e fino, despertando ainda mais as estrelas. O piano límpido e certo sempre no compasso e sempre cortando minutos e segundos. E a guitarra rouca e grave que se fazia soar como o maestro do concerto…E tudo começou, fazendo rodopiar a noite e as notas que saíam e dançavam no ar, num bailado quase intocável que tocava a dormida das casas. Não por muito tempo. A dormida despertou, e a pouco e pouco as luzes das casas surgiam a quebrar o escuro, como velas desmaiadas na imensidão de um escuro compacto. Imperturbável a música continuou. Nada dentro de linhas, tudo fora de limites, cada um por si a harpa tocava, o piano tocava, a guitarra tocava o violino tocava, como se não existisse nada e tudo existisse e girasse em torno deles…Sons agudos e estridentes e graves e surdos e mudos e cegos, e apesar de nada tocarem em especial eram os sons mais leigos e bonitos que o mundo alguma vez tinha ouvido. Baques secos, raspar de cordas e descoordenação de tons e notas, lindo desatino de música, lindo soar da noite e lindo soar de tudo e nada junto numa só alma. Concerto para a noite, concerto para a árvore bonita, concerto para as pedras gastas, concerto para as casas. Tudo em plena consciência e nada adormecido. Poder de música que começara baixa e se tornara estrondosa. As mãos não paravam de se mexer, não enquanto toda a noite não acordasse junta. Não enquanto todas as casas da rua, da região, do país e do mundo acordassem. Os dedos ficavam sem forças, e as unhas em carne viva de tanto rasparem nas cordas, o violino rasgado, o piano sem tino, a guitarra e a harpa quase sem cordas. Tudo a acordar. Acordem pedras! Acorda árvore! Acordem folhas! E ramos! E lua! E estrelas! E tudo acordado! Acordem casas! Acordem tudo e todos! Para isso serve o concerto dos passos tocado pelas mãos! Para isso serve esta música que ouvem…as casas em alvoroço, mas a voltarem ao sono, e a lua e as estrelas muito mais mortiças que no antes do som, e a árvore mais quieta que a própria morte…e tudo encerrado num mundo que teima em não acordar.