27.4.08


O medo escorre pelas paredes nuas e brancas escurecidas pela falta de luz. As mãos atravessam o que pensam ser um corredor. Há luz opaca e fosca. O medo escorre-me pelas mãos. E o que sinto é o misto do cheiro a ser humano com a podridão da escuridão que lhes pertence. As mãos percorrem as paredes nuas e brancas e sentem a rugosidade da madeira. Os receptores das mãos que se juntam em milhões de nervos que conduzem o sinal até ao cérebro. Sim. É a rugosidade da madeira. Incrível corpo, inconcebível organismo, fantásticos fenómenos e contudo sempre tão miserável. Todos miseráveis.
As mãos suportam o peso robusto do puxador e num movimento brusco e seco a porta abre-se num ruído de dobradiças mal oleadas. A divisão é escura e apertada. Existem vozes de pessoas amontoadas, umas sobre as outras. Palavras que cortam outras a meio e rasgos de loucura em vozes caladas e outras gritantes: Não quero morrer. Em certos dias fui o único que te ouviu, não me deixes. Amor, sente-me eu amo-te. Quero-te tanto, mas não te desejo. Vê como te odeio e te mato aos poucos. Os ouvidos giram em turbilhões inconscientes e tresloucados. As mesmas mãos que percorriam as paredes nuas e brancas enfraquecem o som nos ouvidos. As paredes nuas e brancas. Os olhos olham-nas no interior como se fosse o único sítio onde pudesse descansar. As vozes cessam. Tudo cessa. Luzes em foco surgem apontadas para as vinte e oito pessoas. Vinte e oito pessoas juntas num palco demasiado pequeno. Em frente cinco cadeiras empilhadas, como se tivessem sido abaladas pela torrente de letras no ar. Em frente, os rostos cobertos por máscaras brancas sem expressão. Todos permanecem em silêncio. Esperam que me sente numa das cadeiras e num acto teatral surge uma mulher de cabelos longos e carbonizados. Um homem aproxima-se da mulher e espera. És o amor na minha pele. Tu és a melodia, a doce melodia celestial. Amor. A palavra amor ficou retida no ar. E com se a palavra retirasse todo o sentido, a mulher e o homem arrancam as máscaras. És o ódio marcado nas minhas entranhas. Vómito visceral, asqueroso. Desaparecem e todos os outros retomam as palavras em tom monocórdico, depois as máscaras jazem uma após outra no chão e os gritos ouvem-se, os sons de dedos a estalar, de ossos a quebrar por dentro bem por dentro, preenchem novamente o ar. Desta vez não cessam. Nem vão cessar nunca mais. Os pés correm para a porta de madeira. As mãos voltam a suportar o peso do puxador. Desta vez não há o ruído. Desta vez não há a força que abra a porta. Desta vez não há nada que a abra. Estou preso numa maré de pessoas que se amontoam em meu redor impedindo-me de respirar. E falam, falam sem cessar. A sufocar. Não quero morrer. Em certos dias fui o único que te ouviu, não me deixes. Amor, sente-me eu amo-te. Quero-te tanto, mas não te desejo. Vê como te odeio e te mato aos poucos.
O medo escorre-me pelas mãos. E o que sinto é o misto do cheiro a ser humano com a podridão da escuridão que lhes pertence. Incríveis corpos, inconcebíveis organismos, fantásticos fenómenos e contudo sempre tão miseráveis. Todos miseráveis. A sufocar. Máquinas de sentimentos humanizados e frios. Miseráveis. Morro no meio desta podridão. Eu mato-me para não os ouvir.