9.4.07

Outrora...


Outrora fui alguém. Outrora vestia-me com roupas direitas e engomadas por mim.
Agora vejo as minhas roupas que outrora eram engomadas por mim. Foi alguém que mas trouxe, foi alguém que mas vestiu, foi alguém que decidiu o que ia vestir. Olho-me ao espelho. Tenho cinquenta anos…acho eu. Se não tenho, deveria ter. Não me lembro. Só me lembro da altura em que engomava as minhas roupas e os perfumes da cozinha se entranhavam na minha roupa incendiando a casa dos outros de apetite voraz. O que aconteceu ontem não sei. O que comi de manhã não sei. O que disse a rapariga da televisão cinco minutos atrás não sei. Só sei os momentos felizes que passei quando outrora era alguém mais novo e tinha dias mais felizes. Ando muito esquecida. É a vida que me põe assim. Dantes memorizava cinco recados por uma semana…não era assim. Agora não sei. E continuo a não saber. Será que alguém sabe? Não sei. Não me quero lembrar de agora, prefiro lembrar-me dos dias em que era feliz.
Estou presa à minha memória.

Outrora fui alguém. Outrora era eu quem andava de bicicleta pelo meio das ruas outrora sem carros. Agora vejo as bicicletas amontoadas a um canto. Velhas, sujas, enferrujadas. Lembro-me de andar por as ruas da minha terra à procura de uma noiva. Ela nunca apareceu. Escrevi num papel: “Procura-se noiva”, mas nenhuma apareceu a reclamar o pedaço de papel. O papel ficou velho e gasto como eu. Estou sozinho. Ninguém me quer. Ninguém gosta realmente de mim. E eu continuo sozinho agarrado ao pedaço de papel que teima em não se desfazer com o tempo. E eu tento reparar a solidão, implorando companhia aos que me pisam as costas cansadas. Não sei porque o faço. Será que deveria procurar a companhia de outros? Daqueles que me levam o pão todos os dias e que me procuram nos dias em que não devemos estar sozinhos? Não sei. Eu preciso que todos me acompanhem. Mesmo aqueles que me pisam, porque eles são irmãs, sobrinhas… Deviam-me acompanhar. Preciso.
Estou preso à minha solidão.

Outrora fui alguém. Outrora peguei numa enxada e cavei os meus campos, plantei e colhi os frutos do que fui. Agora estou preso a uma cadeira que parece de cimento. Na frente uma janela que me mostra o mundo, mostrando-me que não posso ver o mundo se não dali. E quero pegar na enxada, mas as pernas ganharam raízes num chão que não existe. E quero levantar-me sem mãos a segurarem-me os braços, mas o meu tronco parece um tronco de árvore rugoso e rígido, incapaz de vergar. Imaginam-me como uma árvore velha? Pois sou. Tenho as mesmas rugas vincadas e os mesmos anos que algumas atingem. Encerro tal como as árvores memórias de Invernos e verões passados. Encerro em mim as boas colheitas, os bons dias de sol, a dureza das chuvas…e lembro-me com cada detalhe, como se fosse hoje. E perco-me nos meus olhos cansados em histórias e canções que o vinho tem o poder de reavivar. Dou por mim a reparar nas minhas mãos tostadas pelo sol, velhas e cansadas demais para uma enxada. Dou por mim a reparar nas veias gordas como seiva bruta de uma árvore. Hoje levanto-me para olhar através da janela aquilo que nunca conseguirei ter mais, o mundo diante de mim ao nível dos meus olhos. Sento-me outra vez. Levanto-me. Sorrio para aqueles que me vêem. Um sorriso terno. Não tenham pena de mim. Levanto-me e olho outra vez pela janela os campos que enchi de sementes. Porquê?
Estou preso ao meu corpo.

Outrora fui alguém. Outrora vestia-me com as minhas saias rodadas e blusas brancas como a cal. Outrora não tinha as mãos calejadas e no meu pescoço pendiam-me fios de ouro. Conheci um homem. Era um homem de enxada na mão. Punha os campos cheios de verde. Casei-me e abandonei para sempre as minhas saias rodadas e blusas brancas. Os fios de ouro ficaram guardados em caixas na cómoda. Não valia a pena usá-los. As blusas brancas ficaram cor de terra. As mãos delicadas, calejadas e gastas. Não me importei. Agora as minhas mãos estão ainda mais gastas, desta vez pelo tempo. A minha cara parece um manto que caiu ao chão. Não me importo. Estou cada vez mais velha, mas nem por isso deixo de encostar a barriga no fogão, nem por isso deixo de pegar numa enxada, nem por isso deixo de levantar o corpo do meu homem cansado, nem por isso deixo de fazer tudo aquilo que fazia antes, talvez faça ainda mais.
Estou presa à obrigação.

Outrora fui alguém. Outrora ouvia os sons do mundo, trabalhava de sol a sol, mas era feliz. Era feliz, porque casei com uma mulher bonita sempre de roupas engomadas e direitas. Eu gostava muito da mulher…acho que ela nunca gostou assim tanto de mim como eu gostei dela. Beijava-lhe o chão. Mas agora, as coisas são bem diferentes. O amor tornou-se em cansaço, não por ela não se lembrar de muitas das coisas que vivemos, mas por não admitir que não se lembra. Tornou-se em cansaço porque não aceita a doença dela e consome-me a paciência ao dizer que está tudo bem. Ela sabe que não sabe. Mas não diz. Pelo menos ela sabe que no dia em que admitir isso, a doença é uma realidade. Consome-me a paciência saber que ela fala para mim e eu não a ouço. Ela acha que não a ouço porque não quero. Não é verdade. Não ouço porque não posso…ela já devia saber…mas não sabe, não se lembra. E continuamos a expelir palavras do dentro que não queremos, tudo porque eu não ouço e porque ela não se lembra.
Estou preso ao quase silêncio.