1.11.08

É a dor e a solidão a chamarem-me para falar. São quase oito da manhã, mas elas sabem como me chamar. Têm mecanismos próprios que nos levantam os lençóis e deixam o frio entrar. O frio. O frio e o vazio lambem-me a pele e beijam-me os olhos na certeza de que serão os meus amantes esta noite e depois. Eles não me dão amor, mas eu procuro-os com a sede de um copo de água. Eles não me afagam, mas é tudo o que há por agora. Eles são o nosso fruto. Porque é que nos deixamos arrastar por eles? Porque é que não conseguimos simplesmente virar-lhes as costas e seguir por ali? Diz-me tu.

22.10.08

4.10.08


Há dias em que por vezes a saudade aperta. Os momentos ficam presos em nós e não saem tão cedo. Há manhãs que depois de acontecerem, mudam para sempre a vida de alguém. Aquelas manhãs em que obtemos a resolução de uma vida, uma decisão. Eu sei que hoje, isso não vai acontecer sem que algo aconteça primeiro. Esta manhã está longe dessa. Está longe de ser a manhã com que toda a gente acorda a desejar. Aquela que se vê em sonhos e se espera no dia seguinte. Aquela manhã em que os nossos sonhos ainda existem e a realidade não passa de um sonho. Hoje acordei por entre os lençóis amolgados, como carros num acidente, e os olhos ainda viram o que viram em sonhos, ainda o sentem, e a imagem daquele ainda aparece delineada no escuro, como marcas na pele.
Esta manhã não é uma daquelas que muda a vida de uma pessoa. O sol aparece em intervalos curtos, o frio sente-se anunciando a morte do verão. Esta manhã é só uma saudade que aperta o peito. Uma saudade de mim. Uma saudade de tudo.

24.9.08

Como num vídeo a vida brota a cada hora, a cada minuto. Respira e morre a cada segundo. Ninguém sabe o que acontece no meio, nem mesmo no fim. Naquele fim em que esperamos momentaneamente pelo ecrã preto e o fim da música.
Preciso de mais. Não quero que me amem, prefiro que me mintam. Não sou bom de amar, nunca fui. Sou o que sou. Mas quero sentir algo. Quero sentir muito mais do que o simples dia a correr. Quero inventar as horas. Quero inventar sentimentos. Quero sentir a novidade dos dias. Quero lutar contra todos, com a mesma força de um grande homem. Quero reinventar o amor para que ele não morra. Quero dizer que existo. Quero o meu nome escrito no mundo. Quero que todos me saibam. Quero escrever o que ninguém pensa. Quero pintar o que ninguém vê. Quero ser único. Simplesmente magnifico. Quero ser sem o pensar em ser. Quero tanto e tudo mais à volta.

25.7.08

Nada que o tempo possa conhecer, pode trazer de volta as lembranças de quando eu era pequena. Só o tempo que trago comigo é que as pode trazer. Quando era pequena e fazia do mundo a minha bola, que os meus pés pequenos, e os dos outros, chutavam contra o espaço limitado por duas grandes pedras, que era a nossa baliza improvisada. E aí o tempo conhecia-me bem, e eu tratava-o por tu. Nada que o tempo possa conhecer, pode trazer de volta as lembranças de quando eu era pequena. E no entanto traz. E faz-me lembrar de quando eu era pequena e usava calções e nada sabia. E nas pernas trazia os pêlos finos da inocência. Aqueles que ainda não se tiravam por serem demasiado insignificantes. O tempo traz a lembrança daqueles tempos em que os adultos ainda me perdoavam os erros e deixavam escapar abraços quando acordava a chorar durante a noite com os pesadelos dos fantasmas. O tempo traz a lembrança de quando os adultos nos seguravam, e nos apanhavam no ar só com uma mão. Agora, só alguns me conseguem apanhar no ar, usando as duas mãos, e sabe deus como lhes custa. O tempo traz a lembrança dos tempos em que não sabia das tristezas do mundo e o mundo não sabia das minhas. E ficávamos os dois na ignorância, porque ficar na ignorância nestas coisas é sempre melhor. Ficávamos e ponto final. Não interessavam as vidas paralelas dos outros, não interessava o sentido da minha, a estética, o design, o sentido artístico ou a dimensão arquitectónica daquilo que fazia, das palavras que proferia, o que desejava, o que sentia…Aprendi quando era pequena a fazer do mundo o meu recreio, visão que acho muito mais evoluída. Uma visão determinada, astuta, faria quiçá um brilharete no mundo dos adultos.
Nada que o tempo possa conhecer, pode trazer de volta as lembranças de quando eu era pequena. E no entanto traz. Traz de uma forma súbita e quase dolorosa. Ele não me visitava quando era pequena. Só agora com algumas rugas e alguns cabelos brancos aparece. E eu como sempre ofereço-lhe chá de tília com biscoitos de canela, tentando desfiar o fio da conversa e encurtar-lhe as pernas, para que ele não corra atrás de mim. Há que ganhar vantagem e fugir. Porque ele traz as lembranças e talvez algo mais.

1.7.08

Porque renascemos com os abraços

Tu, sim tu aí, dá-me um abraço. Não tenhas medo de te sentir mal com o sentimentalismo puro dos seres. Dá-me um abraço.

27.4.08


O medo escorre pelas paredes nuas e brancas escurecidas pela falta de luz. As mãos atravessam o que pensam ser um corredor. Há luz opaca e fosca. O medo escorre-me pelas mãos. E o que sinto é o misto do cheiro a ser humano com a podridão da escuridão que lhes pertence. As mãos percorrem as paredes nuas e brancas e sentem a rugosidade da madeira. Os receptores das mãos que se juntam em milhões de nervos que conduzem o sinal até ao cérebro. Sim. É a rugosidade da madeira. Incrível corpo, inconcebível organismo, fantásticos fenómenos e contudo sempre tão miserável. Todos miseráveis.
As mãos suportam o peso robusto do puxador e num movimento brusco e seco a porta abre-se num ruído de dobradiças mal oleadas. A divisão é escura e apertada. Existem vozes de pessoas amontoadas, umas sobre as outras. Palavras que cortam outras a meio e rasgos de loucura em vozes caladas e outras gritantes: Não quero morrer. Em certos dias fui o único que te ouviu, não me deixes. Amor, sente-me eu amo-te. Quero-te tanto, mas não te desejo. Vê como te odeio e te mato aos poucos. Os ouvidos giram em turbilhões inconscientes e tresloucados. As mesmas mãos que percorriam as paredes nuas e brancas enfraquecem o som nos ouvidos. As paredes nuas e brancas. Os olhos olham-nas no interior como se fosse o único sítio onde pudesse descansar. As vozes cessam. Tudo cessa. Luzes em foco surgem apontadas para as vinte e oito pessoas. Vinte e oito pessoas juntas num palco demasiado pequeno. Em frente cinco cadeiras empilhadas, como se tivessem sido abaladas pela torrente de letras no ar. Em frente, os rostos cobertos por máscaras brancas sem expressão. Todos permanecem em silêncio. Esperam que me sente numa das cadeiras e num acto teatral surge uma mulher de cabelos longos e carbonizados. Um homem aproxima-se da mulher e espera. És o amor na minha pele. Tu és a melodia, a doce melodia celestial. Amor. A palavra amor ficou retida no ar. E com se a palavra retirasse todo o sentido, a mulher e o homem arrancam as máscaras. És o ódio marcado nas minhas entranhas. Vómito visceral, asqueroso. Desaparecem e todos os outros retomam as palavras em tom monocórdico, depois as máscaras jazem uma após outra no chão e os gritos ouvem-se, os sons de dedos a estalar, de ossos a quebrar por dentro bem por dentro, preenchem novamente o ar. Desta vez não cessam. Nem vão cessar nunca mais. Os pés correm para a porta de madeira. As mãos voltam a suportar o peso do puxador. Desta vez não há o ruído. Desta vez não há a força que abra a porta. Desta vez não há nada que a abra. Estou preso numa maré de pessoas que se amontoam em meu redor impedindo-me de respirar. E falam, falam sem cessar. A sufocar. Não quero morrer. Em certos dias fui o único que te ouviu, não me deixes. Amor, sente-me eu amo-te. Quero-te tanto, mas não te desejo. Vê como te odeio e te mato aos poucos.
O medo escorre-me pelas mãos. E o que sinto é o misto do cheiro a ser humano com a podridão da escuridão que lhes pertence. Incríveis corpos, inconcebíveis organismos, fantásticos fenómenos e contudo sempre tão miseráveis. Todos miseráveis. A sufocar. Máquinas de sentimentos humanizados e frios. Miseráveis. Morro no meio desta podridão. Eu mato-me para não os ouvir.

29.3.08

Não há nada. Em mim não há nada. Estou mais vazia que o próprio ar que ainda aparenta estar fora de mim. Tudo o resto está a quilómetros de distância. Criei o meu próprio deserto da ilusão. Ou o que pensei ser a realidade é no fundo a minha ilusão. Não importa agora. Nada realmente importa agora.
Vejo-me como se estivesse dentro do meu corpo, mas até eu fugi de mim, ou então tento numa promessa vã. Eu queria sentir-me dentro de outro corpo. Um corpo melhor. Uma vida melhor. Um algo inexplicavelmente repleto de coisas que me fizessem sentir numa realidade fora da ilusão que criei. E são raras as vezes, talvez não tão raras, que consigo sair do meu corpo e viver a vida de alguém. No entanto, agora vejo-me como se estivesse dentro do meu corpo. Vejo as mãos e os braços nus e pálidos num fundo de areia que se confunde com a minha cor. Os meus pés descalços movem-se para um nada que é igual àquilo que tenho. Não há nada. Não há nada aqui, nem ali, nem além. O desespero do nada, mais o desespero do vazio é igual ao cair por terra. Vejo o meu corpo cair tão lentamente, como se nem ele tivesse vontade. Vejo o meu corpo cair, vítima de uma bala perdida inexistente mas não ausente. Vejo os pés moverem-se e cada vez mais a ficarem presos. Os passos presos, as mãos a serem devoradas pela cor daquela areia. As pernas a serem engolidas. O tronco. O pescoço. A boca a engolir o sufoco do vazio. As areias a preencherem o que eu não tenho. O grito preso em cada partícula de ar que se difunde com as partículas de areia. Cada fio de cabelo a transparecer o meu chão. O corpo a ser engolido pela areia numa manhã que pouco diz. Nada me diz. Pouco, é outra ilusão para não se dizer que não se tem nada, ou não se quer nada. Não há nada. Em mim não há nada.
Agora o momento é feito para me esquecer. Ninguém pergunta por mim. Nem o meu corpo é encontrado. O deserto está finalmente deserto. Não há nada. Em mim não há nada, porque eu não existo.

1.2.08

Um corpo. Dois corpos. Células e milhares de ínfimas coisas que nos constituem e nos fazem parecer tão grandes à beira das coisas pequenas. Um corpo. Um corpo com toda a multiplicidade de sentimentos, com toda a intrincada rede de veias e artérias que rodam em voltas profundas, em arcos sem sentido que rodopiam. E nesses arcos e voltas, os nossos vasos encontram-se e os ligamentos de uns rodeiam os outros, em ligações cada vez mais espessas. Provo o sangue que corre e não me sabe a sangue. Sabe a uma mistura dos cheiros que nos compõem. Sabe a pele arrepiada com olhos historiadores e lábios molhados. Sabe a mãos dadas e olhares presos. Sabe-nos. Um corpo. Dois corpos. Dois corpos que são pele em nós. Os poros que nos cobrem em sintonia. A brotar partículas do que o sangue contém e representa. Partículas que se juntam e formam grandes cordões. Cordões que saem de cada poro que nos cobre e que se espalham como antenas cortando o ar. Cordões que nos atam e ao mesmo tempo nos soltam e nos envolvem em nuvens multicolores que pintamos com pincéis e tinta do nosso corpo. As mãos ossificam-se por instantes. Ossos, músculos e tendões.
Os peitos unem-se e os corações modificam os batimentos para se encaixarem um no outro. Fizemos acreditar ao mundo que o coração tem oito divisões e que em cada uma delas habitam outros corações e dentro desses ainda outros. Somos ao todo mil e trezentos corações a bater em uníssono e a espalhar o que somos por cada fibra.
E os fios de cabelo jazem uns em cima dos outros, num emaranhado em que as cores se juntam e os cabelos encaracolados e lisos não se conseguem distinguir. Formam um aglomerado de formas e cores que combinam. Texturas suaves e sonhadoras, de cheiro a frutos, a vento e a perfumes que se entrecruzam.
Os narizes tocam-se e ficam a fitar-se lentamente como se tivessem olhos.
Os olhos juntam os nervos que os envolvem e a íris movimenta-se em torno de um eixo invisível que vê ao mesmo tempo dois corpos, e quatro pares de olhos.
Os braços fundem-se como ramos, na tentativa de chegar mais perto. As pernas fundem-se como um tronco só, na tentativa de tocar o interior dos interiores.
E os dois corpos deixam de ser dois. Um corpo. E no entanto és tu e eu. Um corpo maior e concêntrico. Estás em mim, por dentro de mim.