3.8.07

A cabana era pequena e com umas quantas tábuas de madeira ao alto, incertas e inseguras. Quando o vento girava, elas gingavam como baloiços de crianças. Lá dentro, quase pouco e quase pouco chega para descrever o que era quase nada. Lá fora quase um mundo de areia. O habitante da cabana era um velho chamado Velho. Assim o chamavam e assim era o seu nome. O Velho era um desses velhos mesmo velhos. O corpo era feito de árvore rugosa e gasta, de casca grossa e compacta. O cabelo confundia-se com a areia, muito branco e seco. Na sua cara pareciam ter construído escadas pequeninas e muito juntas, daquelas que poucas pessoas sabem subir. E os seus olhos eram profundos e escuros, feitos de matéria que tudo viu.
Há muito tempo atrás, o Velho tinha nascido. A sua mãe estava a lavar a roupa com água de coco, quando lhe atingiram as pontadas como raios. O pai do Velho recebeu-o nos braços e junto com ele uma fonte de água vermelha já sem vida. Que vivas os anos que a tua mãe não viveu, e proferindo a praga se calou, nunca mais falou e assim morreu mudo como o sol, passados alguns anos. O Velho cresceu, mas já era velho. Já sabia falar, já sabia andar, nadar e pescar… e sempre sozinho aprendeu a controlar os seus pensamentos, as suas angústias e o tédio do mar e das areias, todo o ano a bater-lhe nos calcanhares, escavando-os. O Velho teve de viver a vida da sua mãe primeiro e só depois a sua. Sabendo disto, mergulhava no mar e ficava duas horas sem o nariz tocar no ar. Primeiro a água entrava nos pulmões, e estes dilatavam como duas vasilhas a transbordar, depois a água ficava a baloiçar-se por entre brônquios e outras ramificações, até chegar ao sangue tornando-o semelhante a água vermelha. Depois saía do mar e ficava na areia a cuspir água salgada, como se dentro da sua boca houvesse um depósito inesgotável. Não morria. E o Velho já perdera o fio das contas…estaria no fim da vida de sua mãe ou no fim da sua?
Sentava-se na areia todos os fins de tarde. À volta as coisas repetidas, vistas e revistas milhares de vezes…só de olhar os olhos vomitavam a imagem devolvendo-a ao mundo. Um dia o velho desejou muito morrer. Mas nada aconteceu. A sua morte veio muito depois, em resposta à sua pergunta de forma incerta…o Velho tinha terminado de viver a vida de sua mãe, tinha ultrapassado o meio da sua, não estava no fim. Os deuses lá se compadeceram da velhacaria solitária que era a sua vida e deixaram-no morrer. O corpo sentado na areia como sempre, a cara enterrada numa mão e o sol a tostar o que já estava carbonizado. Depois aconteceu. O seu corpo encarquilhou como uma folha de papel ao lume, ficando imóvel, as suas rugas tornaram-se ainda mais fundas, os seus cabelos ficaram areia. Um tronco de árvore jazido no meio do nada e a cabana plantada ao lado. Às vezes sento-me no velho tronco chamado Velho e ainda consigo ouvir a sua pergunta. Descansa Velho, estás no fim da tua vida.

Beijando o chão por entre linho e algodão imaculado, assim eram os pés dela. Seis anos de gente. Sorriso fácil e vontade de abarcar o mundo inteiro com os seus bracinhos minúsculos eram as suas principais virtudes. E foi esta vontade de abarcar o mundo que a levou à grande estante de madeira escura. Analisou-a durante uns longos segundos, como se fosse uma espécie de deus intocável, depois pôs-se nas pontinhas dos pés, como uma bailarina, tentando chegar ao impossível. Não desistiu. Arrastou uma qualquer cadeira próxima e empoleirou-se com os joelhos no assento. Pôs-se de pé e o dicionário vermelho tocou-lhe o nariz fazendo-lhe cócegas com as partículas sábias que assentavam há anos nas suas folhas e capa. O dicionário estava comprimido entre dois livros, um deles muito gordo e outro deles muito magrinho. Disse-lhes bom dia com o olhar, deu-lhes um beijo curto na capa em jeito de saudação e pediu-lhes para se afastarem um bocadinho. As suas capas tocaram o seu nariz em jeito de assentimento e afastaram-se. Ela puxou o obeso dicionário com muito cuidado, sentido o peso do mundo nas duas palmas da mão. Pousou-o no chão fazendo um baque grave, como alguém que raspou o joelho no chão. Ela abriu-o pelo meio, voltando as folhas para trás e para a frente, tal como a sua mãe lhe tinha ensinado. Sabia desenhar as letras da sua palavra e sabia como procurá-la. Passou pela amolgadela, passando rapidamente para a amónia, ficando presa no significado de amonólise…palavra estranha, significado confuso…parou na amontoação e no amontoar e por fim…ali estava ela…Amor.
Já há algum tempo que o seu nariz procurava o cheiro daquela palavra, que as suas mãos procuravam a textura das suas letras e a sua boca o sabor da sua entoação. Tinha ouvido falar por aí como as noticias que vêm no jornal. Leu-lhe o significado. As suas narinas só captaram o cheiro a velho do dicionário, as suas mãos só sentiam as folhas opacas e amareladas do dicionário e a boca longe estava de saborear algo concreto. Fechou o dicionário com a curiosidade murcha e pôs os pés a caminho para encontrar respostas. A avó disse-lhe o mesmo que o livro velho, o avô nada lhe disse porque não a ouviu por entre o bater da água nas folhas das plantas e a mãe disse-lhe para ler nas entrelinhas. Decompôs a palavra. Entre as linhas. Abriu novamente o dicionário e viu entre as linhas do significado. Havia a cor amarelada da folha, nada mais. Aguçou os olhos, com duas aguças amarelas e as suas meninas dos olhos dilataram-se colando-se ao dicionário. Nada para além de umas quantas palavras já desfocadas e olhos no nariz.
Fechou o dicionário e deixou-o a um canto. Os seis anos de gente percebeu. Afinal o amor não era coisa que viesse no dicionário. Levantou-se e correu para o mundo, levantando pedras e espreitando entre as relvas dos jardins.