3.8.07

Beijando o chão por entre linho e algodão imaculado, assim eram os pés dela. Seis anos de gente. Sorriso fácil e vontade de abarcar o mundo inteiro com os seus bracinhos minúsculos eram as suas principais virtudes. E foi esta vontade de abarcar o mundo que a levou à grande estante de madeira escura. Analisou-a durante uns longos segundos, como se fosse uma espécie de deus intocável, depois pôs-se nas pontinhas dos pés, como uma bailarina, tentando chegar ao impossível. Não desistiu. Arrastou uma qualquer cadeira próxima e empoleirou-se com os joelhos no assento. Pôs-se de pé e o dicionário vermelho tocou-lhe o nariz fazendo-lhe cócegas com as partículas sábias que assentavam há anos nas suas folhas e capa. O dicionário estava comprimido entre dois livros, um deles muito gordo e outro deles muito magrinho. Disse-lhes bom dia com o olhar, deu-lhes um beijo curto na capa em jeito de saudação e pediu-lhes para se afastarem um bocadinho. As suas capas tocaram o seu nariz em jeito de assentimento e afastaram-se. Ela puxou o obeso dicionário com muito cuidado, sentido o peso do mundo nas duas palmas da mão. Pousou-o no chão fazendo um baque grave, como alguém que raspou o joelho no chão. Ela abriu-o pelo meio, voltando as folhas para trás e para a frente, tal como a sua mãe lhe tinha ensinado. Sabia desenhar as letras da sua palavra e sabia como procurá-la. Passou pela amolgadela, passando rapidamente para a amónia, ficando presa no significado de amonólise…palavra estranha, significado confuso…parou na amontoação e no amontoar e por fim…ali estava ela…Amor.
Já há algum tempo que o seu nariz procurava o cheiro daquela palavra, que as suas mãos procuravam a textura das suas letras e a sua boca o sabor da sua entoação. Tinha ouvido falar por aí como as noticias que vêm no jornal. Leu-lhe o significado. As suas narinas só captaram o cheiro a velho do dicionário, as suas mãos só sentiam as folhas opacas e amareladas do dicionário e a boca longe estava de saborear algo concreto. Fechou o dicionário com a curiosidade murcha e pôs os pés a caminho para encontrar respostas. A avó disse-lhe o mesmo que o livro velho, o avô nada lhe disse porque não a ouviu por entre o bater da água nas folhas das plantas e a mãe disse-lhe para ler nas entrelinhas. Decompôs a palavra. Entre as linhas. Abriu novamente o dicionário e viu entre as linhas do significado. Havia a cor amarelada da folha, nada mais. Aguçou os olhos, com duas aguças amarelas e as suas meninas dos olhos dilataram-se colando-se ao dicionário. Nada para além de umas quantas palavras já desfocadas e olhos no nariz.
Fechou o dicionário e deixou-o a um canto. Os seis anos de gente percebeu. Afinal o amor não era coisa que viesse no dicionário. Levantou-se e correu para o mundo, levantando pedras e espreitando entre as relvas dos jardins.

4 comentários:

D. disse...

o amor é palavra que se sente e que por vezes dói mais do que mil prédios a ruir por cima de nós. é uma imensidão de coisas a acontecer ao mesmo tempo. é o amor que não cabe em milhões de páginas de dicionários.

Anónimo disse...

Conheço uma menina que gostava e gosta de livros... Rabiscava-os à Picasso e comia-lhes as folhas... Agora anda por esse mundo em busca de muitas palavras. Quase sempre as encontra...

Sara Morgado disse...

O amor das páginas amarelas é o amor calmo, que se deita sobre a nossa solidão.
A solidão que vem de estalos na cara, quando procuramos o amor debaixo das pedras e das árvores e das pessoas.

Anónimo disse...

o importante é nunca desistir de procurar o amor em tudo o que nos rodeia! não é em livros que encontramos o verdadeiro significado, mas nos actos.. e é tao bom senti-lo, dá-lo e partilhá-lo!

O amor que transcende tudo..o nosso amor fraterno!